terça-feira, 22 de novembro de 2011

debaixo da pele


Nada havia além dos seus imensos olhos azuis. E do sentimento de culpa por odiar algo tão perfeito. Da opressão que sua beleza me causava. Em meu mundo sempre houveram aqueles estranhos presentes infantis. Eu, garota de subúrbio, filha de professores, com minha Barbie vestida de princesa. Aquela boneca, o sonho de qualquer garota, e seu eterno sorriso dizendo-nos quão defeituosas nós eramos. Nas histórias, sempre a mãe, a filha, a melhor amiga. No mundo real, cheio de problemas, escolas públicas, crianças carentes, desejos de fartura, neste ela jamais existiu. Para todas as meninas que conheci, porém, era mais que uma boneca. Era um símbolo. A ideia fantástica de uma vida de príncipes, princesas e castelos. Da riqueza nas roupas brilhantes, e da beleza vista na televisão. Beleza inalcançável, angélica, virginal. Pobres de nós, crianças de subúrbio. Aliás, pobres de nós, crianças negras de subúrbio, com nossos cabelos sempre crespos, nossa pele tão escura. Na vida, aquelas que se sentirão sempre culpadas de sua feiura, de sua aparência inaceitável. Aquelas que buscarão no branco a sua razão de viver. A própria pele, o próprio corpo, estes são seus maiores inimigos. Pobres crianças de subúrbio. Pobres de todos nós, perto de nossas Barbies ganhas no Natal. Alimentou-nos a falsa sensação de que há justiça no fato de podermos tentar nos igualar a ela, alisando nossos cabelos, usando uma lente azul, clareando as pontas. Mas a pele é o retrato da redenção que jamais será alcançada. Porque o próprio Jesus, pintado nos vitrais das igrejas frequentadas pelo menos a cada domingo, até mesmo nosso Jesus salvador, é branco, loiro e tem olhos azuis.
Jamais houve lugar para nós. Fomos escravos, hoje somos bandidos, favelados, ou mulatas cuja única qualidade é a possibilidade de sexo fácil. Para as que nem "corpo de mulata" têm, então sobra nada. O espelho revela a raiz ainda crespa do cabelo; ou os olhos das pessoas, estes espelhos revelando o que eles pensam sobre nós. Desnudando a pena pseudo-consciente que nos destinam, ou a indiferença diante de nossos destinos parcos. Assim vivemos, como se o sabor de certas conquistas fossem levemente amargos. Conquistas que na verdade, se parecem com algo que foi convenientemente permitido conquistar. A vaga numa escola particular (talvez a única negra na sala); a vaga na universidade pública (através das cotas); um lugar numa grande empresa (por mérito próprio). E então vemos que o mérito próprio é mais um subterfúgio inventado para encobrir as feridas abertas na história. Mais uma forma de dizer que a maior parte dos negros só não conseguem "subir na vida" porque não se esforçam. As cotas existem para "dar essa força", ok. Enquanto isso, o ensino público continua risível. Mas chegamos num ponto em que acredita-se, não há mais desigualdade racial no Brasil, apenas de classe. Devemos agradecer nossos feitores, por mais esta constatação? Quem afirma isso, além dos brancos? Ou dos "negros de alma branca"? Porque não é culpa de ninguém nascer loiro dos olhos azuis, mas é culpa de todos contribuir para que o pensamento colonialista ainda perdure.
Quando criança, é claro que eu não tinha consciência disso tudo. Mas já naquela época eu desgostava da Barbie. Se hoje há princesas negras, modelos negras, até Misses negras, bate certa felicidade, certa satisfação em ver que aquela velha opressão vem sendo combatida. Porém, quando penso na "nova" ditadura da beleza, encarnada por uma Gisele Bündchen descendente de alemães, loira, magérrima e adorada mundo afora, estas alegrias se parecem com migalhas jogadas da mesa para matar temporariamente uma fome que dura séculos. A fome de toda a África, de todos os filhos dos filhos dos filhos dos filhos de um pai que já foi escravo; a fome das crianças de subúrbio que, sonhando em serem perfeitas, imaginam-se brancas. A minha fome de mulher negra que alimenta tudo aquilo em que acredita. A Barbie nunca foi minha amiga.